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quarta-feira, 30 de junho de 2010

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Ler pouco "A vida intelectual", de A.D. Sertillanges

Capítulo retirado do livro "A vida intelectual", de A.D. Sertillanges. Baixe o livro aqui.
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CAPITULO VII - A preparação do trabalho

A. – A LEITURA
I – Ler pouco.



Trabalhar significa aprender e significa produzir: em ambos os sentidos, o trabalho requer longa preparação, porque produzir é um resultado, e só aprende, em matéria árdua e complexa, quem primeiro atravessou o simples e o fácil: "devemos correr para o mar por meio dos regatos, e não de repente" diz S.Tomás.

Ora, a leitura é o meio universal para aprender, e é a preparação próxima ou remota para toda a produção. Nunca pensamos isoladamente: pensamos em sociedade, em colaboração imensa; trabalhamos com os trabalhadores do passado e do presente. Graças à leitura, pode compararse o mundo intelectual a uma sala de redacção ou repartição de negócios, onde cada qual encontra no vizinho a sugestão, o auxílio, a critica, a informação, o ânimo de que carece.

Portanto, saber ler e utilizar as leituras, é necessidade primordial que o homem de estudo não deve esquecer. Primeira regra: lede pouco. Em 1921, no jornal Le Temps, Paulo Souday que, pelo visto, se queria vingar de mim nalguma coisa, agarrou-se a este preceito: "lede pouco", e pretendeu descobrir nele laivos de ignorantismo. O leitor, se leu o jornal, sabe o valor daquela crítica e, sem dúvida, Paulo Souday também o sabia.

Eu não aconselho a restringir parvamente a leitura: tudo quanto fica dito protesta contra semelhante interpretação. Queremos formar um espírito largo, praticar a ciência comparada, manter o horizonte aberto diante de nós, o que não se consegue sem muita leitura. Mas muito e pouco só se opõem no mesmo terreno. Aqui, é preciso muito absolutamente, porque a obra é vasta; mas pouco em relação ao dilúvio de escritos de que a mais insignificante especialidade sobrecarrega hoje bibliotecas e as almas.

Proscrevemos, sim, a paixão de ler, a ânsia, a intoxicação por excesso de nutrição espiritual, a preguiça disfarçada que prefere ao esforço a frequentação fácil. A paixão da leitura, de que tantos se prezam como de preciosa qualidade intelectual, é tara, é paixão em tudo semelhante às demais paixões que absorvem e perturbam a alma, retalhando-a de correntes confusas que lhe esgotam as energias.

Leia-se com inteligência, não com paixão. Vamos aos livros como a dona de casa vai à praça, depois de cumpridas as ocupações quotidianas de acordo com as leis da higiene e da boa administração. A dona de casa não vai à praça com o mesmo intuito com que vai à noite ao cinema. O mesmo sucede com a leitura: é questão, não de gozar e de se embriagar, mais de governar e administrar bem a casa.

A leitura desordenada não alimenta, entorpece o espírito, torna-o incapaz de reflexão e concentração e, por conseguinte, de produção; exterioriza-o no seu interior, se assim se pode dizer, e escraviza-o às imagens mentais, ao fluxo e refluxo das ideias que ele se limita a contemplar na atitude de simples espectador. É embriaguez que desafina a inteligência e permite seguir a passo os pensamentos alheios e deixar-se levar por palavras, por comentários, por capítulos, Por tomos. A série de excitações assim provocadas arruina as energias, como a constante vibração estraga o aço. Não esperemos trabalho verdadeiro de quem cansou os olhos e as meninges a devorar livros; esse encontra-se, espiritualmente, em estado de cefalalgia, ao passo que o trabalhador, senhor de si, lê com calma e suavidade somente o que quer reter, só retém o que deve servir, organiza o cérebro e não o maltrata com indigestões absurdas.

Ide antes dar um passeio, ler no livro imenso da natureza, respirar o ar fresco, distrair-vos. Depois da actividade tomada voluntariamente, organizai a distracção voluntária, em vez de vos entregardes a um automatismo que de intelectual só tem a matéria, mas que em si é tão banal como o escorregar por uma encosta ou o escalar uma montanha.

Fala-se da necessidade de estar 'ao corrente', e decerto um intelectual não pode ignorar o género humano, menos ainda desinteressar-se do que se escreve na esfera da sua especialidade; cuidado, porém, não vá a 'corrente' arrastar todas as disponibilidades laboriosas e, em vez de vos levar para diante, imobilizar-vos. Para avançar, é preciso remar; nenhuma corrente, por si só, vos conduzirá aonde quereis chegar. Abri, por vós próprios, o caminho, e não enveredeis por todas as sendas que se vos oferecem.

A restrição deve afectar sobretudo as leituras menos substanciais e menos sérias. Não falemos do veneno dos romances. Um ou outro de quando em quando por distracção e para não perder de vista alguma glória literária; mas que seja pura concessão porque a maior parte dos romances abalam e não repousam, agitam e desorientam os pensamentos.

Quanto aos jornais, defendei-vos deles tanto mais energicamente quanto mais constantes e indiscretos são os seus ataques. Convém saber o que os jornais contêm; mas é tão reduzido o conteúdo! E seria tão fácil informar-se dele, sem necessidade de se instalar em intermináveis sessões da preguiça! Em todo o caso, há horas mais adaptadas para a corrida às notícias do que a hora do trabalho. O trabalhador consciencioso deveria contentar-se com a crónica semanal ou bimensal duma Revista, e recorrer aos jornais só quando lhe apontem algum artigo notável ou acontecimento grave.

Em resumo: podendo recolher-vos, ponde de parte a leitura; lede unicamente, excepto nos momentos de distracção, o que respeita ao fim em vista, e lede pouco, para não devorar o silêncio.

O trabalho permanente - "A vida intelectual", de A.D. Sertillanges

Capítulo retirado do livro "A vida intelectual", de A.D. Sertillanges, disponível gratuitamente para downloads aqui.
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CAPÍTULO IV - O tempo do trabalho
I - O trabalho permanente

Instintivamente queremos conhecer do mesmo modo que pedimos pão. Se os mais dos homens se deixam prender por desejos errôneos, o pensador é obsidiado pelo desejo de saber; porque o não utilizará, aproveitando-o como se aproveita um curso de água para mover uma turbina?

Será isso possível? Sim, é; a experiência e a psicologia o ensinam. O cérebro trabalha sem remissão; as turbinas, que reclamo, existem, giram, arrastando em suas voltas um sistema de rodas donde se escapam as idéias como as centelhas dum dínamo em pleno rendimento. Os processos nervosos encadeiam-se em série contínua e não param, do mesmo modo que os movimentos do coração ou dos pulmões. Que falta para aproveitar, em favor da verdade, esta vida permanente? Só a disciplina. É preciso que os dínamos estejam ligados às turbinas, as turbinas à corrente de água; é preciso que o desejo de conhecer acione regularmente, e não por intermitências, o funcionamento cerebral, consciente ou inconsciente.

A maior parte da atividade nervosa de nada serve, pela simples razão de não ser captada. A falar a verdade, nunca o será totalmente, porque o nosso poder sobre ela é relativo, e, se tentarmos forçar o rendimento, arriscamo-nos a quebrar a máquina. Mas para obter o possível, basta relativamente pouca dessa atividade, desde que saibamos cultivar o hábito. Este, bem montado, opera como segunda natureza. Têm aqui lugar os nossos conselhos práticos.

“Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”, recomenda São Tomás ao homem de estudo. Mais abaixo voltaremos a esta comparação, que pode dar margem a equívocos; aqui trata-se do cuidado em adquirir, não da maneira. O que importa ao homem de verdade é compreender que a verdade está em toda a parte, como corrente contínua capaz de acionar a alma, mas que ele deixa passar em vão.

A sabedoria clama nas ruas, diz a Bíblia; eleva a voz nas praças públicas; prega à entrada dos lugares ruidosos, às portas da cidade: até quando, ó ignorantes, amareis a ignorância?... Convertei-vos... que sobre vós espalharei o meu espírito... estendo a mão e ninguém me dá atenção (Prov. 1, 20-24). Se esse apelo incessante em favor da verdade fosse escutado, alargaria o espírito e enriquecê-lo-ia mais do que muitas sessões laboriosas. Estas são necessárias; mas a luz que aí se concentra expandir-se-ia até iluminar quase toda a vida; estabelecer-se-ia uma corrente que atrairia para a lâmpada os resultados do pensamento difuso, e de lá reverteria para este mesmo pensamento, a fim de lhe comunicar orientação e fecundidade.

Que sucede quando quereis mobiliar um quarto? Em princípio, nem sequer pensáveis nos móveis. Circuláveis pelas ruas de Paris, onde abundam as lojas de antiquários, mas não reparáveis nelas. Desconhecíeis as tendências da moda, o valor provável de tal ou tal achado, a especialidade de tal bairro, os preços, etc. Mas, uma vez estimulado o espírito pelo desejo, tudo vos impressiona, tudo vos retém; dir-se-ia que Paris é um vasto armazém e no espaço de oito dias ficais ao par do que não lograríeis conhecer durante a vida inteira.

Ora, a verdade está mais espalhada que os móveis: clama nas ruas e não nos desampara, se a não desamparamos. As idéias estão nos fatos; estão também nas conversações, nos acasos, nos espetáculos, nas visitas e nos devaneios, nas leituras, por banais que sejam. Tudo contém tesouros, porque tudo está em tudo, e algumas leis da vida ou da natureza governa o mais.

Newton não teria descoberto a gravitação, se a atenção ao real o não tivesse advertido e disposto a reparar que as maçãs caem como os universos. As leis da gravitação dos espíritos, as leis sociológicas, filosóficas, morais, artísticas, não têm menos aplicação em toda a parte. Qualquer fato pode gerar um sublime pensamento. Em toda a contemplação, mesmo na de uma mosca ou de uma nuvem que passa, há oportunidade de reflexões sem-fim. Toda a captação de luz pode conduzir ao sol; todo o caminho aberto é corredor para Deus.

Ora, podemos captar todas essas riquezas estando presentes. Olhando tudo com espírito de inspiração, veremos em toda a parte lições, profecias da verdade ou confirmações, causas e conseqüências. Mas no mais das vezes estamos ausentes, nós ou a nossa atenção. “Toda a gente olha o que eu olho, mas ninguém vê o que eu vejo”, dizia Lamartine diante do mar encapelado. Habituai-vos, pois, a estar presentes a este jogo do universo material e moral. Aprendei a olhar; confrontai o que se vos oferece com as idéias que vos são familiares ou secretas. Numa cidade não vejais somente casas, mas vida humana e história. Que um museu vos não mostre apenas quadros, mas escolas de arte e de vida, concepções do destino e da natureza, orientações sucessivas ou diversas da técnica, do pensamento inspirador, dos sentimentos. Que uma oficina vos não fale apenas de ferro e de madeira, mas da condição humana, do trabalho, da economia antiga e moderna, das relações entre as classes. Que as viagens vos ensinem a conhecer a humanidade; que as paisagens evoquem a vossos olhos as grandes leis do mundo; que as estrelas vos falem das durações incomensuráveis; que as pedras do caminho sejam para vós o resíduo da formação da terra; que a vista duma família se associe em vós à das gerações, e que a menor conversa vos informe sobre a alta concepção do homem. Se não souberdes olhar assim, tornar-vos-eis banais, se já não sois. O pensador é filtro onde a passagem da verdade deixa o melhor da sua substância.

Aprendei a escutar, e escutai, primeiro, quem quer que seja. Se na praça se aprende a língua materna, como pretendia Malherbe, também na praça, isto é, na vida corrente se pode aprender a língua do espírito. Nas mais simples conversas circulam verdades sem conta. A mais pequena palavra escutada com atenção pode ser oráculo. Há ocasiões em que um camponês mostra maior sabedoria que um filósofo. Todos os homens se encontram no íntimo de si próprios, sempre que lá refluem, e se uma profunda impressão, se um regresso instintivo ou virtuoso à simplicidade original afastar os convencionalismos e as paixões que ordinariamente nos escondem a nossos olhos e aos dos outros, ouve-se um discurso divino todas as vezes que um homem fala.

Em cada homem está o homem todo, e daí podemos retirar uma profunda iniciação. Se fosseis romancistas, quanta riqueza aí recolheríeis! O maior romancista forma-se no limiar das portas, o menor na Universidade ou nos salões. Só que, em vez de se imiscuir, o grande observador reserva-se, vive para si, sobe, e, a mais insignificante vida afigura-se-lhe um soberbo espetáculo.

Ora, o que o romancista busca pode servir a todos, porque todos precisam desta experiência intensa. O pensador só é verdadeiramente pensador se encontrar no mais pequeno impulso de fora, a ocasião dum entusiasmo ardente. O seu caráter consiste em conservar, pela vida afora, a curiosidade da infância, a vivacidade de impressão, a tendência para ver tudo sob o ângulo do mistério, a feliz faculdade de encontrar em toda a parte surpresas fecundas.

No entanto, atenção, sobretudo se tendes a dita de tratar com alguém que sabe e que pensa. É pena que os homens de escola sejam tão pouco úteis aos que os rodeiam! Praticamente assemelham-nos aos simples de espírito; toma-se o que têm de comum e não o que têm de raro. Há neles um tesouro, mas brinca-se com a chave sem o abrir. As vezes sorrimo-nos do seu acanhamento, das pequenas excentricidades de pessoas abstratas, e nisso não há mal; o ridículo é tomar ares de superioridade, que esquecem o valor dos outros.

Os grandes valores estão assaz disseminados para que os deixemos sem uso. Empregam-se a si próprios e toda a gente se utiliza deles sem o saber; mas sabendo-o, recebe deles instrução e impulso capazes de decidirem, às vezes, duma vida inteira. Quantos que foram santos, generais, exploradores, sábios, artistas, por terem encontrado uma personalidade eminente e ouvido o som duma alma! Esse apelo mudo ecoou neles através de toda a existência; era um clamor que os impelia para a frente; levava-os uma onda invisível. A palavra de um grande homem, como a de Deus, é, por vezes, criadora.

Mas os grandes homens só são grandes após a morte. Em vida, quase ninguém repara neles. Talvez haja a vosso lado quem valha um Descartes e não lhe prestais atenção, não o interrogais, discutis com ele só por discutir, cortais-lhe a palavra para proferir bagatelas. E, se a despeito da sua potente grandeza de espírito, não revela tão potente envergadura, nem por isso consintais que ele sepulte ou gaste em silêncio a sua riqueza.

Observando e escutando – não falo da leitura, porque lá voltaremos – assimilareis e adaptareis às vossas necessidades o que houverdes adquirido. As grandes descobertas são apenas reflexões sobre fatos comuns a todos. Quantas vezes passamos sem nada ver, até que um dia o homem de gênio observa os laços existentes entre o que ignoramos e o que vemos constantemente. Que é a ciência senão a lenta e sucessiva cura da nossa cegueira? É verdade que a observação precisa ser preparada por estudos e soluções anteriores. Encontramos o que procuramos. Só é dado àquele que tem. Por isso eu falava dum vaivém entre as luzes interiores e as exteriores. O espírito deve manter-se em perpétua disposição de refletir, como em perpétua disposição de ver, de ouvir, de apontar a presa que passa, como bom caçador.

Precisando mais, dizemos que esta atenção de espírito pode aproveitar não só a nossa cultura geral, mas a nossa especialidade, ao nosso estudo atual, ao trabalho em gestação. Levai convosco os vossos problemas. O cavalo de aluguel entra na cocheira após a corrida; mas o corcel em liberdade sempre respira à vontade.

Encontrando-se a verdade em toda a parte e estando todas as coisas ligadas entre si, por que não havemos de estudar cada questão, relacionando-a com as demais? Tudo deve alimentar a nossa especialidade. Tudo deve testemunhar pró ou contra as nossas teses. O universo é, em grande parte, obra nossa. O pintor só vê a sua volta formas, cores, movimentos, expressões; o arquiteto equilibra massas; o músico percebe ritmos e sons; o poeta, motivos de metáforas; o pensador, idéias em ato.

Nessas atitudes não há particularismos estreitos; é questão de método. Não podemos abarcar tudo. Reserva-se o interesse para a livre observação, consagramos, a uma pesquisa particular, a atenção de sobresselente, e, “pensando sempre nisso”, como Newton, recolhemos elementos para uma obra.

O segredo está em ter sempre pensamento em expectativa. O espírito do homem é um ruminante. O animal olha ao longe, mastiga lentamente, colhe aqui um tufo, ali uma vergôntea, toma o prado a sua conta, e também o horizonte, compondo com aquele o leite, e com este a sua alma obscura.

Ensinam-nos a viver na presença de Deus; por que não viver também na presença da verdade? A verdade é como que a divindade especial do pensador. Tal verdade particular ou tal objeto de estudo podem estar de contínuo presentes ao espírito. Será sensato, será normal deixar o investigador no gabinete de trabalho, ter assim duas almas: a do trabalhador e a do homem folgado que circula? Tal dualismo é inatural, pois leva a crer que buscamos o bem por ofício e não por nobre paixão.

“Há tempo para tudo” (cfr. Ecle 3, 17), diz a Bíblia, e concordo que não se pode evitar a divisão; mas se de fato pensamos todo o tempo, por que não utilizaremos o pensamento em benefício do que nos inquieta?

Dir-se-á que semelhante tensão é incompatível com a saúde cerebral e com as condições da vida? De acordo; mas também não se trata de tensão, nem mesmo, ordinariamente, de vontade atual. Falei de hábito; falemos, se quiserdes, de subconsciência. O espírito tem o poder de funcionar sem nós, por pouco que preparemos a faina e tracemos de leve o esforço dos canais por onde correrão os seus veios obscuros.

Radicado em nós o desejo de saber e ateada a paixão da verdade, concentrada a atenção consciente sobre os fatos da vida próprios para entreter o fogo e satisfazer o desejo, o espírito assemelha-se a um galgo pronto para a caça. A tarefa já lhe não custa; obedece a uma nova natureza. Pensais tão facilmente numa direção, como outrora ao acaso.

Esta direção é, sem dúvida, só aproximada e seria absurda uma tensão excessiva; mas convirá recusar o que se pode, argüindo com o que se não pode? Tendes aí um imenso recurso; empregai-o, introduzindo um pouco de disciplina num trabalho cerebral que se efetua, mas sem vós e de maneira anárquica. Regulai esse trabalho, de sorte que o cérebro seja, também ele, um intelectual.

Mostrar-vos-á a experiência que isto não cansa, que, pelo contrário, poupa muitas canseiras; porque as descobertas feitas assim ao acaso, sem as buscarmos, simplesmente porque nos resolvemos e decidimos a não ser cegos, estas invenções, muitas vezes mais felizes porque mais espontâneas, incutem ânimo ao investigador, conservam-no alerta e bem disposto; ele espera com delícia a hora de retiro para fixar e desenvolver o resultado das pesquisas.

Alcança-se muitas vezes, desse modo, a ligação difícil, a saída que embalde se procurara à mesa de trabalho. O que não tinha relação com o trabalho conduz a alguma coisa que constitui o fundo do mesmo trabalho. A ciência laboriosa recebe daí nova luz; o homem sabe para onde vai e brevemente um lucro inesperado virá coroar os esforços envidados.

Este processo de acaso responde as contingências cerebrais e ao trabalho obscuro da associação das idéias. Muitas leis se verificam aí, sem que haja lei para a sua aplicação a uma ou a outra, a tal ou a qual hora, e tudo isto se combina sem nossa intervenção – quer dizer, sem que a vontade intervenha, só debaixo da impressão do desejo que é a alma do pensador e que o qualifica; como o jogo qualifica a infância, como o amor qualifica a mulher – isto não é o excesso de carga que se supõe.

Cansa-se porventura a mulher que, durante o passeio, detém-se a espiar as homenagens dos transeuntes, ou a moça à cata de ocasião de rir, ou o rapaz a espreita da oportunidade de brincar? O espírito que espreita a verdade por amor, não por constrangimento, por tendência a princípio instintiva, depois cultivada, mas amorosa e apaixonadamente, também não sofrerá mais por isso. Diverte-se, caça, entrega-se a um desporto útil e inebriante, longe do esforço concreto e voluntário das horas de concentração.

Deste modo o sábio passeia, por todos os tempos e em todas as estradas, um espírito maduro para aquisições que o vulgo descura. A seus olhos, a mais humilde ocupação é o prolongamento da mais sublime; as visitas de cerimônia são inquéritos felizes, os passeios explorações, as suas audições e respostas mudas um diálogo que mantém, nele, a verdade de acordo consigo própria. Por toda a parte o seu universo interior se confronta com o outro, a sua vida com a Vida, o seu trabalho com o incessante trabalho dos seres, e ao sair do estreito espaço em que o seu estudo se concentra, sente a impressão, não de abandonar a verdade, mas de lhe abrir a porta de par em par, a fim de o mundo drenar para ele toda a verdade que se gasta nos seus potentes folguedos.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Como Utilizar um Livro


Aprenda em 2 minutos Como Utilizar um Livro. Super fácil e prático. Muito bom!!!

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Into the future | Entrando no futuro - parte 1

Documentário de Terry Sanders, produzido por American Foundation em associação com Commission on Preservation & Access e American Council on Learned Societies, alertando sobre o risco de perda de informação armazenada em formato digital.

Into the future Entrando no futuro - parte 1




Into the future Entrando no futuro - parte 2



Into the future Entrando no futuro - parte 3



Into the future Entrando no futuro - parte 4

Por que ler os clássicos

Ítalo Calvino

Comecemos com algumas propostas de definição.

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo…” e nunca “Estou lendo…”.
Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram “grandes leitores”; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro.

O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranqüilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras “de formação” de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.

Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio.


Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição:


2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.


De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aqueles constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será:

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas sobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.


Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer:

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

A definição 4 pode ser considerada corolário desta:


6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como:

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e através de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos de Turgueniev ou Os possuídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.

A leitura de um clássico deve oferecere-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que:

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo:

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

Naturalmente isso ocorre quando um clássico “funciona” como tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os “seus” clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.

E só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o “seu” livro. Conheço um excelente historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Documentos de Pickwick[*] e a propósito de tudo cita passagens provocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com episódios pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo, a verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma idéia de clássico muito elevada e exigente:

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.
Com esta definição nos aproximamos de idéia de livro total, como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo não posso deixar de incluí-lo entre os meus autores. Direi portanto:

11. O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de todas essas acepções do termo, consulte-se o exaustivo verbete “Clássico” de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa continuidade cultural. Poderíamos dizer:

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: “Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?” e “Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?”.

É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o “tempo-leitura” de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir “de onde” eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidade numa sábia dosagem. E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante.

Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume. Acrescentemos então:

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.
Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa.

Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi, dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, para conforto da irmã (“o teu Stendhal”, escrevia a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos pássaros de Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson.

Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicam, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar, separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais.
Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei. Efeito da explosão da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos.

Depois deveria reescrevê-lo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque “servem” para qualquer coisa. A única razão que se apode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.
E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

Ítalo Calvino
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[*] A referida obra de Dickens foi editada no Brasil como As aventuras do Sr. Pickwick. (Nota da EL)

Original: CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. In: _________________________. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.9-16.

Proteste Já: USP sem biblioteca

Programa CQC foi ao ar no dia 31 de maio de 2010. Livros da biblioteca da Faculdade de Direito da USP foram abandonados e alunos são impedidos de estudarem.


Bibliotecas e copistas




No seu esforço de salvaguarda intelectual, o que a Igreja ensinou em primeiro lugar à humanidade foi o respeito pelo livro. Amava-se, venerava-se e rodeava-se de zelosos cuidados esse pesado caderno de pergaminho que continha a palavra de Deus ou de um de seus fiéis, e que, aliás, era raro e custava caro: uma biblioteca de 900 manuscritos era considerada imensa e causava espanto. “Morre desonrado quem não ama os livros”, dizia um provérbio; e “um claustro sem livros é um castelo sem arsenal”, dizia São Bernardo. As preciosas obras andavam de convento em convento, para que pudessem ser copiadas, e, no período negro das invasões normandas, a perda das bibliotecas era um dos desastres mais cruelmente sentidos.

A imagem do monge copista, debruçado sobre a sua escrivaninha ao longo de toda a jornada, caligrafando ou iluminando as páginas de um Evangelho ou um Saltério, é uma daquelas que se fixam em todas as memórias. Essas multidões de anônimos a quem devemos o conhecimento que temos de Boécio, Santo Agostinho, São Jerônimo, como também de Virgílio, Terêncio, Ovídio e Horácio – esses escribas de Deus, graças aos quais a inteligência humana conservou o contato com o seu passado -, deixaram-nos uma recordação viva, acompanhada de gratidão. Havia séculos que existiam centros muito célebres de cópias – e continuaram a existir do século XI ao século XIV: Saint-Gall, Reichenau, Fleury-sur-Loire, Corbie e Mont Saint-Michel. Outros foram-se desenvolvendo, como Saint-Germain-des-Prés em Paris, ou Saint-Martial em Limoges. Cada um tinha o seu estilo no modo de traçar a letra – a antiga ou, depois, a uncial, derivada da minúscula carolíngia -, e sobretudo na arte de iluminar as maiúsculas iniciais ou de compor, numa página inteira, as maravilhosas miniaturas que nos encantam os olhos. Assim, em Corbie, manteve-se um estilo proveniente da tradição carolíngia, constituído por uma extraordinária amálgama de vida e de abstração. Em Saint-Martial de Limoges, os iluminadores filiaram-se visivelmente à escola dos vitralistas e esmaltadores, o que resultou num gênero novo, com pequenas cenas regularmente dispostas. Já das oficinas de Paria começaram a sair essas obras-primas de realismo e liberdade que são os Saltérios de São Luís, em exposição na Biblioteca Nacional e no Museu Condé de Chantilly.

É difícil imaginar o tempo que era necessário para realizar essas obras. O número de linhas, em certas cópias da Bíblia, deixa-nos confusos. E a cor das miniaturas, obtida por camadas sucessivas, exigia, depois da secagem de cada uma, semanas de espera para o mais ínfimo pormenor. E assim, valendo-se do tempo, os copistas puseram-no a seu serviço e, no brilho do seu ouro, dos seus azuis luminosos, das suas púrpuras e dos seus tons profundos de violeta, esses artistas do manuscrito apresentam-nos ainda hoje a sua obra na intacta perfeição de uma eterna juventude.

Quando, no século XIII, a cultura saiu dos conventos e das catedrais, e se instalou nas Universidades, os copistas seguiram o mesmo caminho. Sob a direção de mestres que eram clérigos, criaram-se oficinas dirigidas por leigos. As de Paris, centro intelectual da Europa, foram numerosas. Guillebert de Metz, no princípio do século XIV assegura que, espalhados pela capital e em torno dela, havia sessenta mil copistas. O manuscrito tornou-se então uma indústria e a miniatura passou a ser feita em série. Mas isso não impediu que continuassem a surgir verdadeiras obras-primas, como o Breviário de Belleville, que Jean Belleville e a sua oficina realizaram por volta de 1320.


NOTA: É interessante detalhar os métodos de trabalho dos copistas, segundo pesquisas recentes. O modelo da obra (exemplar) era depositado em casa de uma “livreiro estacionário”, depois de ter sido examinado por mestres especialistas designados pela Universidade. Estava dividido em cadernos ou peças numeradas. O mestre, estudante ou escriba profissional que quisesse transcrever determinada obra, alugava o modelo, peça por peça. Logo que tivesse copiado uma, entregava-a de volta. Podia acontecer que, por qualquer motivo, a peça 3, por exemplo, lhe fosse dada antes da peça 2; neste caso, ou deixava no seu caderno o espaço necessário, com risco de ter de se utilizar das margens, ou, se fosse pouco escrupuloso, não respeitava a ordem das peças, o que, durante muito tempo, deixou os filólogos perplexos. A lista dos exemplares disponíveis nos livreiros era anunciada na Itália pelo bedel das escolas; na França, era exposta nos dominicanos ou nos franciscanos, no dia em que os universitários assisitam a um ofício.

Fonte: Daniel-Rops, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, págs 339-340.