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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Obesos de informação, famintos de sentido

O Grito - Edvard Munch 1863-1944
Obesos de informação, famintos de sentido

A força do sentimento varia, mas raramente me livro dele. Vivo com a sensação difusa de estar perdendo algo. O dia não cabe no dia. Quero fazer mais coisas do que posso, quero saber mais do que sei que sou capaz de assimilar. O meu corpo-a-corpo contra a ansiedade do tempo e a dispersão da atenção é uma batalha sem trégua.

Fala-se muito na sobrecarga de informação a que estamos submetidos. É verdade. A revolução tecnológica em curso multiplica de modo vertiginoso as possibilidades de comunicação e acesso a todo tipo de informações. Uma fibra ótica da espessura de um fio de cabelo comporta o equivalente a 500 canais de TV simultâneos. O corpus platônico vai todo num CD.

Vivemos sob um bombardeio cerrado de estímulos, cercados de sons, rótulos, slogans e imagens por todos os lados. Surfamos pelas telas e virtualidades do dia como que sitiados por um pelotão de mensagens e apelos desconexos clamando por estilhaços de nossa atenção.

Tudo isso, não nego, é parte da realidade. Mas quando observo à minha volta e reflito com mais cuidado sobre o que se passa comigo, concluo que é apenas um dos lados -- o mais óbvio -- da questão.

É sem dúvida confortável alimentar a crença de que somos vítimas passivas do sequestro e invasão forçada de nossas mentes por forças externas; de que a sobrecarga de informação que nos aflige é uma avalanche sob a qual vivemos, a contragosto, soterrados. Que este seja o aspecto mais saliente e imediato de nossa experiência, não duvido. O que é preciso considerar, contudo, é que somos em larga medida cúmplices do problema que enfrentamos.

Olhar humano

Ao banquete pantagruélico de mensagens e informações que nos é oferecido e empurrado a cada instante corresponde a nossa não menos formidável gula faustiana. Nada, ao que parece, sacia. A oferta alimenta a demanda; a demanda estimula a oferta. À aceleração vertiginosa do tempo e à multiplicação dos meios e estímulos que nos acossam corresponde a nossa espantosa insaciabilidade e a incontinência do nosso desejo por mais.

O assédio, é certo, existe. Mas, se ele vinga, é porque encontra terreno fértil no apetite que nos devora. A tortura que nos oprime e que nos torna alheios a nós mesmos não vem de fora, mas tem raízes na nossa incapacidade interna de lidar com o mundo que estamos criando e que nos escapa e amedronta como um ser hostil. A vítima é o algoz.

O que está acontecendo? O modelo que me ocorre, sempre que penso no problema da atenção estilhaçada e da sobrecarga de informação, baseia-se numa analogia com o funcionamento do nosso aparelho perceptivo.

Os órgãos sensoriais que nos ligam ao mundo são extremamente seletivos naquilo que registram e transmitem ao cérebro. O olho humano, por exemplo, não é capaz de captar todo o espectro de energia eletromagnética existente -- tudo o que seria em tese passível de ser visto --, mas apenas uma pequena faixa intermediária chamada "espectro visível".

O restante do espectro (cerca de 98% do total) não chega a ser registrado pelo olho, o que felizmente não se revelou fatal, pelo menos até aqui, para a nossa capacidade de sobrevivência no processo evolutivo. É por isso que os raios ultravioleta, por exemplo, estão fora do "espectro visível" humano, mas são captados pelo aparelho visual das abelhas, para cuja sobrevivência são cruciais.
O mesmo se aplica aos demais sentidos. O ouvido humano é capaz de detectar vibrações sonoras entre 20 e 20.000 ciclos por segundo. Os sons que circulam fora desses limites, como as ondas hertzianas que animam os aparelhos de rádio, escapam da teia do nosso equipamento auditivo.

Suponha, porém, que uma súbita mutação genética reduza drasticamente a seletividade natural dos nossos sentidos. O que aconteceria se, de repente, nós tivéssemos que passar a lidar com toda uma gama extra e uma carga torrencial de percepções visuais e auditivas com a qual não estamos habituados?
O ganho de sensibilidade seria tangível. "Se as portas da percepção se desobstruíssem", sonhava o místico-romântico William Blake, "tudo se revelaria ao homem tal qual é, infinito". O problema é saber se estaríamos em condições de assimilar e usar devidamente o fantástico acréscimo de informação sensível que isso acarretaria.

Seletividade

O ponto crucial é que existe uma adequação profunda entre a constituição do nosso aparelho perceptivo, de um lado, e a nossa capacidade de processamento de impressões sensíveis, de outro. O mais provável é que um súbito salto qualitativo em nosso equipamento sensorial produzisse não a revelação mística imaginada por Blake, mas um terrível engarrafamento cerebral, gerando um estado de confusão e perplexidade do qual apenas lentamente conseguiríamos nos recuperar.
Tudo está ligado a tudo. Nada é igual a nada. É a brutal seletividade dos nossos sentidos que nos protege da infinita complexidade do universo. A ordem que percebemos no mundo é essencialmente devida à pobreza de nossa experiência. Imagine o que significaria, por exemplo, passar a captar e ouvir em nossas mentes todas as ondas radiofônicas que cruzam inauditas o nosso caminho. Se a proteção desaba, o caos mostra os dentes.

A impressão que tenho é que estamos vivendo algo parecido com isso. O pano de fundo é o avanço tecnológico que, como uma súbita mutação, não só amplia a velocidade e o volume das informações a que temos acesso, como também parece despertar em nós uma voragem descomunal e insaciável por elas.
O nervo do problema é que existe um descompasso essencial entre esse apetite desgovernado por doses adicionais de informação, de um lado, e a capacidade limitada do nosso cérebro de assimilá-las, digeri-las e integrá-las em um todo coerente e dotado de significado, de outro. A resultante é o mal-estar da sobrecarga de informação e da dispersão da atenção. Somos obesos de informação, mas famintos de sentido.

O que fazer? O grande desafio, creio, será reconhecer e aceitar os limites da nossa capacidade interna de processamento e conseguir domar a voragem quase compulsiva que com frequência nos leva a agir com base na crença de que mais informação é sempre melhor. Será? É o que questionava, no século 19, o escritor romântico americano Henri Thoreau: "Nós estamos com enorme pressa para construir um telégrafo magnético do Maine para o Texas, mas pode ser que o Maine e o Texas nada tenham de importante a comunicar... É como se o objetivo fosse falar depressa e não falar de modo sensato".
Há um trade off entre quantidade e qualidade; entre rapidez e profundidade. O que nos falta é o aprendizado e o autocontrole necessários para seguir uma dieta informacional equilibrada. Abrir e explorar, é certo; mas também saber fechar e ruminar.

Eduardo Giannetti
Faculdades Ibmec/SP

GIANNETTI, Eduardo. Obesos de informação, famintos de sentido. Atividades & Experiências, Curitiba, n. 8, p. 40-41, 2003.

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